Conto de Luís Medeiros,O solitário



Ter por vizinho apenas os pássaros, não lhe era nada fácil. Viver de reportagens do jornal, só o ajudava a tornar-se ainda mais isolado.
Solitário era um homem que vivia numa cidade muito populosa. Num dia de inverno, acordou como era seu hábito, por volta das 7 da manhã. Olhou pela frincha do cortinado e viu que o dia estava razoável apesar do frio. Desligou o despertador, sentou-se sobre a cama. Mesmo ai sentado, esticou a mão e apanhou uns calções. Dando um ligeiro jeito no corpo, mas sem realmente deixar de permanecer sentando, despiu as calças do pijama. Vestiu os calções. Puxou de debaixo da cama, uns ténis de marca boa. De dentro dos ténis tirou umas peúgas e calçou-as. Depois calçou as sapatilhas. Levantou-se finalmente e depois de revirar alguma roupa sobre um sofá, achou o que queria, uma t-shirt branca a condizer com os calções.  Vestiu. Foi á casa de banho, urinou para dentro da sanita depois fechou o tampo e puxou a água. Pegou numa escova de dentes e pus pasta. No silêncio da manha, ouvia-se esses pequenos gestos, o abrir e fechar do espelho, o esfregar da escova nos dentes, o cuspir da água para a bacia, o abrir e fechar da torneira. Um pequeno jeito no cabelo e toca a andar. Olhou para os dois lados da cama. Não viu o que cria. Pegou nas calças usadas do dia anterior, e tirou do bolso as chaves. Tirou também a carteira. Não tirou telemóvel, não tinha. Ensacou um fato de treino vistoso e o pus às costas. Abriu a porta do apartamento e a seguir, fechou-a atrás de si. Chegou ao elevador e tocou nos 2 botões que dão tanto para descer como para subir. O elevador veio de baixo. Parou. As portas abrem-se. Entrou. Um vizinho subia.
Bom dia
Bom dia
Passos solitários na garagem e, uma porta fechou-se ao fundo. Um fiat punto de 98. Entrou e com estrondo, fechou a porta. Esfregou as mãos de frio e imediatamente colocou a chave na ignição. Mão esquerda no volante e direita a rodar a chave. O motor não pegou á primeira. Segunda tentativa, o motor pega finalmente. O homem subiu a rampa, clicou num botão do porta-chaves e devagarinho o portão branco, sujo de pó nas gretas horizontais, elevou-se até que por fim o carro saiu. O trânsito circulava com fluidez e nos passeios, as pessoas andavam apressadamente para os seus afazeres. Chegou ao limite da cidade e saiu por uma estrada um pouco mais rural. Parou o carro na parte de trás de uns balneários e saiu. O vento soprava fresco e a pele de galinha depressa o infectou. Começou a correr na praia. Cada passada era um degrau para o infinito, achava ele. O limite leste da praia era deveras inalcançável mas depois alcançável e depois dobrado. Depois era a vingança do limite oeste. Fez isso por seis vezes. Agora, o corpo dele em vez de pedir calor, pedia frio e a água do mar serviu perfeitamente. Um pequeno duche no balneário solitário e a sua pele tornou-se mais fresca. Secou-se com uma toalha e vestiu o fato de treino que havia trazido consigo. Meteu-se no carro e voltou á cidade. Parou na periferia e foi esperar numa paragem um transporte público que o levaria ao centro da cidade. Uma mulher de meia-idade com dois sacos de compras ou parecido aproximou-se da paragem.
Bom dia, tem horas? Ele tirou do bolso um relógio de pulso sem uma das pulseiras.
Faltam vinte para as nove, minha senhora
Obrigada.
De nada, minha senhora.
Ela sentou-se. O barulho do vento era interrompido por carros a passar ou pela senhora que tossia. Outra senhora chegou.
                Bom dia.
                Bom dia.
                Bom dia.
                Vais para a cidade, disse uma para a outra.
                Sim querida, tenho de ir buscar os exames do meu homem.
                Ele já está melhor? E a conversa prosseguiu nesse teor.
Embora não lhe interessasse o contiudo daquela conversa, estava-lhe nos genes ouvir com atenção o que o rodeia. Ouviu toda aquela conversa até chegar finalmente um mini autocarro urbano. Entrou e pagou o seu passe com uma moeda. O autocarro estava quase cheio e as senhoras que estavam com ele na paragem, foram convidadas a tomar os lugares que estavam visíveis. Afinal, ainda havia um lugar lá atrás quase invisível. Ficava ao lado de um jovem de idade escolar que tinha uns auriculares nos ouvidos. O rapaz nem olhou para o solitário. Abanava a cabeça suavemente à medida que olhava pela janela. O som do mp3 era audível pela vizinhança que lhe circundava o acento. Tratava-se de uma musica de Lady Gaga, chata aos ouvidos do solitário que no intimo desejou sair dali, mas que o sua capacidade de flexibilidade absorveu.
O mini autocarro parou numa zona com prédios muito altos e o solitário saiu sozinho naquela paragem. Caminhou pelo meio da rua onde pessoas, talvez apressadas para ir trabalhar, passavam por ele. Mulheres bonitas, homens feios, crianças ruidosas, cães que cheiravam sacos do lixo pretos nas imediações dos edifícios. Buzinadelas de carros à distancia que quase faziam eco. Com as mãos nos bolsos e passo semi-acelerado, solitário dirigiu-se a uma barbearia. A cabeleireira era uma mulher de meia-idade provavelmente solteira tal era a sua dedicação ao trabalho conforme a perspicácia do solitário esmiuçou.
                Bom dia, disse a mulherzinha ao colocar uma toalha em volta do pescoço do solitário. O senhor que me desculpe a demora mas como vê hoje estava com algumas clientes chatas
                Não faz mal
                Como vai ser?
                Não sei se lembra-se de mim da última vez que cá vim, queria um corte algo curto nos lados e um bocado mais comprido em cima, nada de exageros. Não quero ser confundido com algum pank, dizia a sorrir para senhora.
                Ok meu rapaz. À medida que for cortando, você vai me orientando, se quer mais curto ou mais longo.
Um silêncio. Com óculos na ponta do nariz à professora da primaria, a senhora endireitou a cabeça do solitário e começou a olhar pelo espelho.
                Então o senhor é casado?
O solitário percebendo que se tratava de conversa de encher chouriços, respondeu-lhe delicadamente:
                Não, por acaso não.
                Nunca se pensou em casar?
                Não, por acaso não.
                Mas é bom. Solitário apenas sorriu.

(continua...)


Luís Medeiros, o solitário